segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A ocupação do vale do rio calçado

O rio Calçado surge na serra do Capim exatamente entre os atuais municipios de Sapucaia, Sumidouro, Teresópolis, Tres Rios e São José do Vale do Rio Preto. Suas águas descem caprichosamente as faldas opostas das serras que separam as águas dos rios Preto a oeste e Paquequer a leste. Paulatinamente elas correm numa interminavel sequencia de curvas, sempre banhando os contrafortes e várzeas que vão surgindo desde seu terço mais alto, trazendo aluvião durante as cheias; espalhando a preciosa matéria fertil pelas várzeas que banha até sua foz, onde desagua diretamente no rio Paraiba do Sul.
O alto Calçado separa os municípios de Sapucaia e São José do Vale do Rio Preto, assim como, Sapucaia e Tres Rios desde o seu terço médio até a foz. Sua bacia era reduto de segmento de tribos Purys e somente recebe o elemento europeu a partir do séc. XVIII, quando os mesmos possivelmente utilizaram as trilhas desses nativos com o propósito de burlar os "Registros" - de Paraibuna em MG e Pampulha em Sebolas, RJ - ao longo do "Caminho Novo". Desse modo, contrabandeavam o ouro trazido de Minas Gerais, atravesando a zona da mata passando pelo "Arraial do Cágado" - atual município de Mar de Espanha- e depois Chiador, por onde atravessavam o rio Paraiba do Sul no local conhecido como Porto Velho. Já em terras fluminenses, na margem direita do Paraiba, seguindo o ribeirão da Grama em sentido sudeste, subiam a serra da Arataca, onde no primeiro contraforte após um altiplano faziam pouso para descanço e preces ao pé da imagem de Santo Antonio. Naturalmente que o contrabando do ouro só poderia ter sequencia nesse determinado ponto próximo ao "Caminho do Mar de Espanha", que obviamente receberia tal denominação bem posteriormente. É certo, que os primeiros caminhos surgiam a partir das trilhas que os próprios indios utilizavam, invariavelmente entre os rios e as áreas mais elevadas que habitavam para cultivo da mandioca especialmente; fora do alcance das cheias.
Curiosamente com a imagem de Santo Antonio sempre renovada, o local de reza, existe desde tempos remotos segundo a antiga tradição local. Tão verdadeiro é o fato, que anualmente, do mesmo modo, é celebrada a festa secular de Santo Antonio, o legítimo padroeiro do lugar, que tem essa denominação e pertence a Anta, 2º distrito do atual municipio de Sapucaia. Tal municipio surgiria somente após decreto provincial de 25 de fevereiro 1885, recebendo a denominação de Santo Antonio da Sapucaia, justamente devido a antiga tradição. É importante ressaltar, que a "Vila de Anta" já era povoada no ano de 1834, quando Gardner relata a construção de uma ponte de madeira na travessia do Paraiba, no local da atual de concreto existente entre Minas Gerais e Sapucaia no Rio de Janeiro. O autor britânico menciona que existiam apenas ali naquele sertão, umas quatro casinhas habitadas pelos operarios que edificavam a ponte que levava à fazenda do Louriçal, onde se hospedara em terras mineiras. Fica compreensivel que a ocupação do território leste da Paraiba se deu a partir de Santo Antonio, o local de culto antigo próximo à margem do "Caminho do Mar de Espanha". O atalho seria utilizado na primeira década do séc. XIX por Magdalena Maria Pereira, que ao tomar posse de sua parte na partilha da fazenda da Bemposta, edificaria a fazenda Sant,Anna. Após a travessia do local de culto e da serra da Arataca, Magdalena Maria e Damaso José de Carvalho resolveram edificar a sede próxima a uma área vastamente lageada do rio, que por isso mesmo, foi denominado Calçado. Concluida no ano de 1813, a fazenda recebeu a denominação em homenagem a Sant'Anna de Sebolas, onde Magdalena Maria fôra batizada no ano de 1789, assim como, seu irmão Antonio Barroso Pereira (1º barão de Entre Rios), em 1792.
Após a edificação da fazenda Sant,Anna e a ocupação de suas terras, Magdalena Maria edificaria a primeira capela de Sant'Anna no local onde se desenvolveria o arraial e posteriormente a vila de Anta. Nas terras da "BarraD'antas", fazenda que couberia ao filho caçula Damaso José Barroso de Carvalho Jr, teve origem o nome da vila, atualmente 2º distrito de Sapucaia. Na tradição oral familiar, consta que D. Pedro II certa vez, hospede de Damaso Barroso de Carvalho Jr, se apaixorara pela vista da barra do alto da colina. No local, o imperador do Brasil mandaria edificar a graciosa sede em forma de cruzeiro, desse modo, demostraria a gratidão pela hospitalidade; ficaria mais a vontade para fazer uso da residencia sempre que desejasse. Ali ele descançou por algumas vezes, especialmente em suas andanças por, Porto Novo, Cataguases, Leopoldina, Carmo, Cantagalo, etc. A pequena sede resiste ao tempo e ao descaso com sua conservação, e ainda ostenta a escadaria em pedras brutas de granito, que ofereçe acesso desde a colina à linha do trem, pouco antes da estação de Anta. A escadaria presente reforça a tese de que ali naquele exato local, o trem com a comitiva real fazia sua parada fora do ponto oficial da estação, desse modo, oferecendo acesso direto à residencia.
Após a edificação da fazenda Sant'Anna do Calçado, que teve inicio no ano de 1820 nas terras altas do histórico rio, a fazenda Sant'Anna sofreria inumeros desmembramentos. Isso veio a ocorrer devido ao falecimento no ano de 1832 de Damaso José, marido de Magdalena Maria. Proprietária das fazendas Boa União e Piracema em entre Rios, alem de interessada na Mato Grosso fundada por seu pai, Magdalena Maria dividiria grande parte das terras de Sant'Anna entre seus filhos, alem de arrendar outras grandes áreas para cultivo de café. A sede coube ao filho Antonio José Barroso de Carvalho, que mais tarde, desmembraria terras para seus tres filhos Homens.
Por volta de 1840, houve o desmembramento de pouco mais de 100 alqueires de terra, que Magdalena Maria presenteou o filho Mariano José Barroso de Carvalho, por seu casamento com Isabel Leopoldina dos Santos Werneck, filha de seu leal parceiro Antonio Luis dos Santos Werneck. Desse modo, surgiu a segunda fazenda genuinamente de café do vale do rio Calçado que recebeu a denominação de Santarém. A denominação foi uma singela homenagem ao primo de Mariano José que se notabilizara na batalha de Santarém em Portugal no ano de1811 contra as tropas de Napoleão Bonaparte. Luis Barroso Pereira, o intrépido brasileiro que comandara as terriveis canhoneiras que destruiam seguidamente a ponte sobre barcos que os franceses obstinadamente tentavam construir no rio Tejo. Luis faleceu tragicamente no ano de 1826 no comando da fragata Imperatriz então fundeada no porto de Montevideo, atacada por uma esquadra argentina comandada pelo alte. Willian Brown durante as guerras da banda oriental. A morte do lendário oficial da armada imperial, que se formara na Real Academia de Lisboa, com passagem pela Real Academia Britanica; ex comandado de Wellington na batalha de Santarém, enlutara não somente a familia, mas a todo imperio brasileiro. A biografia de Luis Barroso Pereira foi escrita pelo barão do Rio Branco, cuja geração, ainda alcançou a repercussão do mais prodigioso oficial e diplomata da real armada do império do Brasil. Luis, recebeuo nome de seu padrinho de batismo Luis Beltrão de Gouveia e Almeida ao ser ungido com os santos oleos na matriz de Santo Antonio do Tijuco no ano de 1785, quando seu pai exercia o cargo de 8º Intendente dos Negócios de Diamantes da rainha D. Maria I de Portugal.
Após o desmembramento da fazenda Santarém, N.S. da Conceição da Bemposta surgia como vila, fundada por José Francisco dos Santos Werneck, irmão mais velho de Isabel Leopoldina. Nessa ocasião ocorreram varios desmembramentos da fazenda Sant'Anna em beneficio de Antonio Luis dos Santos Werneck, que atuando como meeiro, pagava suas terras com o produto das lavouras de café. Surgiram desse modo, as fazendas Cataguá e Retiro quase simultaneamente, sendo que a primeira teve sede edificada por Fernando Luis dos Santos Werneck, irmão de Isabel Leopoldina, que era casado com sua prima irmã Galdina do Carmo, filha de Luis Barbosa dos Santos Werneck. A fazenda do Retiro foi edificada por Manoel Luis dos Santos Werneck, filho mais velho de Fernando Luis dos Santos Werneck, que por sua vez era padrinho de seu sobrinho homônimo proprietario da fazenda do Cataguá. Manoel Luis dos Santos Werneck casou com Maria Delphina Passos, filha de Ana Maria da Assumpção, que uma vez viúva de Joaquim Machado, casou com Antonio Luis dos Santos Werneck. Ana Maria era filha primogenita do segundo casamento de Antonio Vieira Machado, fazendeiro em Sacra Familia do Tinguá, contemporaneo do capitão Antonio Luis dos Santos que foi pai de Antonio Luis dos Santos Werneck. Antonio Vieira Machado, foi sogro ainda de Luis Barbosa dos Santos Werrneck e Francisco Luis dos Santos Werneck, ambos filhos do capitão Antonio Luis dos Santos.
Antes do inicio da guerra do Paraguay, várias outras fazendas foram sendo edificadas por filhos e sobrinhos de Antonio Luis dos Santos Werneck. Desse modo, surgiram pela ordem, as fazendas Santa Juliana, Olaria e Paciencia. Por outro lado, terras da fazenda Boa Vista, que Antonio Luis dos Santos Werneck adquirira em 1837 do irmão de Magdalena Maria por desmembramento da fazenda da Bemposta, eram desmembradas. Surgiram desse modo, as fazendas do Castelo, erguida por José Francisco dos Santos Werneck, e posteriormente a fazenda do Recreio, edificada por Francisco Inácio dos Santos Werneck e Luisa Maria.Tanto José Francisco como Luisa Maria, eram filhos de Antonio Luis dos santos werneck. A fazenda Boa Vista coube a Inacio Barbosa dos Santos Werneck, que ao se casar com a prima Amélia, irmã de Francisco Inácio e Manoel Luis, alterou a denominação para fazenda Boa União. Após curto período, o futuro barão da Bemposta venderia a fazenda para seu primo Antonio Sousa Leite que era irmão de Augusto Sousa Leite, futuro barão de Águas Claras, que se tornaria proprietario da fazenda de mesma denominação situada em São José do Vale do Rio Preto.
A Fazenda das Águas Claras é da mesma época da fazenda Bela Esperança; ambas são posteriores a fazenda Belem erguida por João dos Santos Werneck, que era primo irmão germânico de Antonio Luis dos Santos Werneck. Estas tres ultimas tambem surgiram antes do inicio da Guerra do Paraguay, assim como a de Santa Cruz, edificada por Saturnino dos Santos Werneck, filho de João. Houve ainda a fazenda Santa Rita em Aparecida, que foi edificada no inicio de 1840 e que pertencia a parentes de Damaso José de Carvalho. Infelizmente a bela e magestosa sede foi posta abaixo por volta do ano 2000.
Muitos filhos desses fazendeiros e de seus proximos em Vassouras e Valença pereceriam no "Chaco Paraguaio" entre alguns escravos das mesmas fazendas. Durante e após a mais terrivel guerra de nossa historia, apareceriam as fazendas ditas de terceira geração, ou seja, a dos netos de Magdalena Maria. Na fase inicial do conflito, houveram ainda algumas edificações de certo requinte arquitetonico, como as fazendas São João, São Sebastião e Mundo Novo. Destas ultimas, resta apenas a São João, mas todas oriundas de desmembramento de terras de Sant,Anna.
Após a guerra do Paraguay, o Brasil empobrecido graças ao esforço de guerra, haveria outro fator internacional que provocaria grandes danos a denominada aristocracia rural cafeeira. A manipulação internacional do comercio de café com base na bosa de Londres, pois novos paises produtores entraram no mercado facilitando a manipulação do preço da saca. Tal situação iria trazer trágicas consequencias que tambem influenciariam no golpe militar de 1889, com a instauração da república. Muitos historiadores apontam a abolição como a principal causa, o que não passa de retórica, pois mesmo bem antes do golpe, havia extensa mão de obra importada, especialmente de Portugal. Muitos descendentes desses portugueses e açorianos tardios, vieram a utilizar a lei do usocapião e se tornaram proprietários de algumas dessas fazendas, estimulados pela politica demagogica de Ruy Barbosa. São exemplos dessa pratica, as fazendas Sant,Anna, Retiro, Harmonia, São João e São Sebastião entre outras.
As fazendas tardias como mencionado, foram aquelas de sedes de aspecto arquitetonico medíocre, reduzidas extensões de terras e todas edificadas após 1865. A fazenda da Aliança foi edificada por Damaso José Werneck de Carvalho, que posteriormente se tornaria 3º senhor da fazenda Santarém. A fazenda da Harmonia, foi o primeiro desses exemplos e edificada por Antonio José Werneck de Carvalho, que era o segundo filho de Mariano José e Isabel Leopoldina. Posteriormente, ele adquiriu de seus tios a fazenda Santa Juliana, mas os tres filhos que teve com Isabel Inacia do Nascimento Vieira, nasceram na fazenda da Harmonia. Foram eles: Arlinda, Evangelina e Celso Vieira Werneck de Carvalho. Na ocasião da mudaça para a fazenda Santa Juliana, Antonio José acatando o pedido da cunhada Francisca Augusta Silveira Werneck de Carvalho, cedeu a fazenda da Harmonia para o irmão desta, Eugenio Tristão Rangel da Silveira que habitava no Mosquital com mulher e muitos filhos pequenos e em condições precárias. Mosquital é um lugar inóspito que fica situado no alto do Cruzeiro, terra alta que pertencia a fazenda do Cataguá, onde residia Tristão Camara, sogro de Eugenio Tristão e feitor e agricultor de Fernando Luis dos Santos Werneck. A terceira filha de Tristão Camara teve como padrinhos os donos da fazenda do Cataguá, tendo recebido o nome da madrinha Galdina do Carmo. Mais tarde, Galdina do Carmo Camara, viria a se casar com Manoel Alves e seriam pais de Tristão Alves Camara, que por sua vez, contrairia matrimonio com Maria Emilia, filha de Emerenciana Augusta - irmã caçula de Francisca Augusta - exposa de Gustavo Lessa.
A fazenda da Floresta, do mesmo modo que Harmonia e Aliança, surgiu atraves do desmembramento de terras da Sant'Anna, que Antonio José Barroso de Carvalho doou ao filho Guilherme José Werneck de Carvalho. Mais tarde ele compraria de seu cunhado Nicolau Antonio dos Passos, a fazenda do Alto do Pegado em Secretário. A fazenda Sant'Anna coube ao outro filho Josino Antonio Werneck de Carvalho e daí a seus herdeiros, até que por usocapião fosse abocanhada por J. Moita de Assunção, portugues analfabeto que ali habitava. Verdadeiramente a crise do café no inicio do séc. XX, associada a política de Ruy Barbosa e o alto custo de manutenção das fazendas que passavam a pecuaria leiteira, alem dos problemas de desavenças entre herdeiros, colaboraram com apropriação das mesmas através da lei do uso do solo de 1842.
Durante a ditadura Vargas, a estrada Rio Bahia utilizaria a rota do Caminho do Mar de Espanha desde Bemposta, quando abandonava a estrada União e Industria que se dirigia à Juiz de Fora, e atingia Alem Paraiba - antiga Porto Novo do Cunha, denominação esta ofertada por Tiradentes - depois de passar por Anta e Sapucaia no Rio de Janeiro. Até essa ocasião, somente de trem, se atingia a villa de Anta, com parada anterior em Chiador e posterior em Sapucaia.