sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

O VALE DO CALÇADO

O Vale do rio Calçado, desconhecido dos grandes historiadores brasileiros, fica situado entre os municípios de Sapucaia, São José do Vale do Rio Prêto e Três Rios, no Estado do Rio de Janeiro. Sua importancia está relacionada ao crepúsculo e resplandecer de dois grandes ciclos econômicos da história do Brasil, o ocaso aurífero em Minas e o surgimento da cultura cafeeira no Rio de Janeiro.
Nem mesmo a maior obra escrita sobre o café no Brasil, faz menção a essa região. Seu autor, o grande historiador Afonso D'Escragnole Taunay, era descendente da familia Teixeira Leite, grandes cafeicultores de Vassouras e Mar de Espanha. Curiosamente, Nicolas Antoine Taunay, seu avô, um dos principais membros da denominada "Missão Francesa" de 1816, passou a residir ao lado da cascata da Tijuca, em um sítio próximo a seus pares de idioma, os primeiros produtores comerciais de café no varejo da praça do Rio de Janeiro.
Recentemente tive a oportunidade de me inteirar sobre o conteúdo de uma correspondência entre o eminente historiador, e o sul paraibano Pedro Gomes da Silva, mais conhecido regionalmente pela alcunha de "Pedro Cabrito". O ultimo indagava informações para o conteúdo de seu livro, que somente seria publicado após sua morte. O título do mesmo foi escolhido por seu grande amigo e colaborador Arnaud Pierre, que o organizou, enriqueceu e publicou. A obra denominada "Capítulos da História de Paraíba do Sul", se constitui em rara referência à história do atual municipio de mesmo nome. Na correspondencia mencionada, A.D.Taunay lamenta não conhecer absolutamente nada sobre a conquista da banda leste da Paraiba, e responde fidalgamente, solicitando possiveis informações ao Pedro Cabrito.
Conheci Arnaud Pierre no ano da comemoração dos 150 anos da fundação da estrada União e Indústria; desde então, apesar de seus mais de 80 anos, caminhamos e devassamos a geografia de várias áreas da antiga Paraíba do Sul e adjacencias. Mostrei-lhe todo o território que pertenceu ao capitão Antonio Barroso Pereira, assim como, as fazendas do Mato Grosso, Sant'Anna, Calçado e outras que ele ainda não conhecia.
O atual município de Paraíba do Sul, fundado em 1834, surgiu a partir da antiga fazenda da Paraíba, edificada por Garcia Rodrigues Paes, na margem do "Caminho Novo", que ele desbravou, ligando Minas ao Rio de Janeiro por volta de 1709. Esse caminho foi encurtado a partir de 1724, por obra do então capitão Bernardo Soares de Proença, que aceitara as codições do contrato com a metrópole. Conhecida como "Variante Proença", o novo trecho partia da Paraiba, passava pelo arraial de Sebolas e atingia o atual município de Petrópolis, para em seguida descer a serra da Estrêla e alcançar o pôrto de igual nome na baía de Guanabara.
A partir de 1750 a capitania de Minas não mais atingia a meta das 100 arrôbas anuais de ouro exigidas pela coroa de Portugal. Para compensar o deficit, a metrópole pressionava com aumento de impostos, as "Derramas", trazendo em contrapartida, descontentamento no extrato social pagador de tributos. Com a situação flagrante de estagnação econômica em Minas, por volta de 1770, algumas familias já haviam deixado aquela capitania em busca de cartas de sesmaria próximas da então vila da Paraíba, mais perto do Rio de Janeiro.
Em 1784, após pomposo casamento ocorrido na matriz de N.S. do Pilar de São João del Rey, o capitão Antonio Barroso Pereira, natural de N.S. do Salto, PT e a jovem Mariana Jacinta de Macedo - nascida na fazenda do Ribeirão dos Cavalos e N. S. da Piedade do Rio Grande em São João del Rey -, fizeram o mesmo. Conseguiram terras na margem da "variante Proença" para edificar a modesta sede da fazenda do Mato Grosso, nas cercanias da capela de N.S. de Sant'Anna de Sebolas, na antiga freguesia da Paraíba.
Pouco antes, no ano de 1781, o então capitão general ou governador de Minas, D. Rodrigo José de Menezes, encarregara o corregedor Luis Beltrão de Gouveia e Almeida, para lavrar alvarás de posse de terras na região leste da serra da Mantiqueira, a "Zona da Mata", ainda denominada desse modo atualmente. O governador percebeu a necessidade de regularizar a situação naquela região da capitania que se encontrava repleta de garimpos clandestinos. Tal território fazia parte dos denominados sertões proibidos pela coroa, ou seja, grandes vastidões de terras ainda não cartografadas e de acesso vedado para evitar contrabando de ouro.
Nesse tempo, o alferes Joaquim José da Silva Xavier - Tiradentes - se encontrava em extensa rotina de trabalho, não somente como militar, chefiando o policiamento na região, mas também como mestre da obra de um posto de guarda, que seria mais tarde transformado no "Registro do Paraibuna". Ele viera do batalhão de Vila Rica como chefe da escolta de D. Rodrigo Menezes, que apreciando sua capacidade, o incumbiu dentre outras, as citadas missões.
Entre sua rotina de trabalho e o descanso, Tiradentes tinha gosto preferencial pelo arraial de N.S. de Sant'Anna de Sebolas, onde se encontravam vários antigos vizinhos e amigos do tempo de sua juventude, das cercanias da vila de São José, que atualmente é o município mineiro de Tiradentes em sua homenagem.
Após seu enforcamento no ano de 1792, houve o episódio macabro do uso de partes de seu corpo esquartejado. Devido a suas amizades no arraial de Sebolas, Tiradentes teve ali exposto o quarto esquerdo superior de seu corpo, o do coração. Tal episódio fez com que o lugar ficasse conhecido como Sant'Anna de Tiradentes, fato que compreendi mais recentemente, quando tive acesso a outra correspondencia entre Pedro Cabrito e Damaso José de Miranda Carvalho. O ultimo era descendente da irmã caçula de Tiradentes, e bisneto de Magdalena Maria e Damaso José de Carvalho. Curiosamente, Damaso José Miranda Carvalho, era sobrinho de Antonio José de Miranda Carvalho que foi proprietário da fazenda do "Governo", uma das mais antigas que subsistem na margem da variante Proença.
Antonio José Miranda Carvalho era filho de Damaso José Barroso de Carvalho, irmão caçula de José Antonio Baroso de carvalho - visconde do Rio Novo - e de Mariano José e Antonio José Barroso de Carvalho, assim como, de Carolina Carvalho Pinto. O corregedor Luis Beltrão de Gouveia e Almeida, viria a ser fiscal na gestão do 8º Intendente nos "Negócios de Diamantes" da coroa no Tejuco em Minas, ambos eram amigos contemporaneos egressos da Universidade de Coimbra.
Tal gestão no "Distrito Diamantino" teve início no ano de 1785 por portaria da rainha D. Maria I. O 8º Intendente era sobrinho, afilhado e homônimo do capitão Antonio Barroso Pereira. No mesmo ano, Luis Beltrão tornou-se padrinho do 1º filho do amigo Antonio, o Intendente. A cerimônia ocorreu na capela de Santo Antonio do Tijuco; o menino recebeu seu nome; ficaria conhecido mais tarde como o notavel oficial da "Armada Imperial", Luis Barroso Pereira, que se notabilizaria a partir da batalha de "Santarém" PT, contra as tropas de Napoleão Bonaparte no ano de 1811.
É importante ressaltar, que o capitão, o intendente, e o filho do capitão, respondiam pelo mesmo nome de Antonio Barroso Pereira. Portanto o 8º Intendente era primo irmão do futuro barão de Entre Rios, assim como, da irmã deste, Magdalena Maria, os únicos filhos do capitão Antonio.
O capitão, era irmão de João Barroso Pereira, desembargador da "Relação" da cidade do Pôrto, e que por sua vez, era o pai do 8º Intendente.
Antes de substituir o 7º Intendente, o terrivel D. Antonio de Meireles, "O cabeça de Ferro", Antonio Barroso Pereira era fiscal em Vila do Príncipe em 1784, por portaria assinada pela rainha Maria I. Ele aqui chegou, recem casado com Inácia da Costa Sampaio a tempo de assistir o casamento do tio e padrinho homônimo.
No Tijuco - Diamantina -, nasceram Luis, Bento e Joaquim, os tres primeiros filhos brasileiros de Antonio (8º Intendente) e Inácia, que foram importantes na consolidação da Independência do Brasil.
É perfeitamente plausivel, que na ocasião que requereu concessão de alvarás de posse de terras na área leste da Paraíba, o capitão Antonio Barroso Pereira tenha sido avaliado candidato preferencial. Não se pode ignorar, que a presença de Beltrão de Gouveia no alto escalão da malha burocrática nessa ocasião, possa ter influído a seu favor, e o ter privilegiado com mais de uma carta de Sesmaria. Por outro lado, é de se considerar, que a coroa distinguia quem tinha reais condições financeiras para laborar a terra. Além disso o capitão era oriundo de uma das mais antigas e importantes familias de Portugal. Barrosos e Pereiras tem parentesco e raizes em Salto, por vários séculos; dali era oriunda Leonor Alvim Barroso, que foi desposada pelo primo Nuno Alvares Pereira, o 2º Condestavel do reino de Portugal. O casal teve a filha Beatriz, que se tornou esposa do 1º duque de Bragança, desse modo, matriarca de toda descendencia, inclusive, o principe regente D. João.
Primariamente, o julgamento do "Conselho Ultramarino" apreciava o perfil do candidato, fato que favorecia o capitão Antonio, que não era um aventureio, mas um funcionário graduado de carreira, de familia importante; que dera baixa da ativa em Vila Rica, no inicio da gestão Rodrigo Menezes.
Luis Beltrão de Gouveia e Almeida, membro ha tempos do "Tribunal da Relação" no Rio de Janeiro desde que deixara o cargo de 9º Intendente dos Diamantes no Tijuco, fora efetivado titular no cargo no ano de 1805. Chegava ele ao topo de uma brilhante carreira no Brasil, desde que deixara Salvaterra de Magos,PT, quando atuara como corregedor de concessão de alvarás de posse de terras na capitania de Minas.
Por designação do regente D. João, Luis Beltrão de Gouveia e Almeida, deixaria o Brasil para se tornar capitão general da Ilha da Madeira no ano de 1814. Ali como governador, despachando normalmente no seu gabinete de trabalho, faleceria ele (de síncope cardíaca), o eterno solteirão e uma das mais brilhantes inteligencias do reino.
Com o falecimento do capitão Antonio Barroso Pereira antes de 1805, a viuva Mariana Jacinta veio a contrair segundas nupcias com o capitão José Antonio Barbosa, da fazenda Sebolas, cuja sede ficava defronte a capela de Sant'Anna, onde fôra expôsto parte do despojo de Tiradentes em 1792.
Certamente, após a morte do capitão Antonio Barroso pereira, o segundo marido da então viuva Mariana Jacinta, viria a assinar os livros de concessão de Sesmarias na banda leste da Paraíba. O fato também explica, que após a morte do capitão Antonio, sua viúva Mariana Jacinta e os únicos filhos do casal, Magdalena Maria (nascida em 1879) e Antonio (nascido em 1792 e futuro 1º barão de Entre Rios), herdariam a maior parte do imenso território da banda leste da vila da Paraíba. Tais terras se localizavam desde a margem fluminense do rio Paraíba do Sul, abrangendo os atuais distritos de Anta e Aparecida, pertencentes ao atual município de Sapucaia, assim como, o distrito de Bemposta, pertencente atualmente a Três Rios.
Consequentemente as determinações do governador da capitania de Minas a partir de 1781, houve grande adensamento populacional na mencionada zona leste da Mantiqueira ou "Zona da Mata", em especial no arraial do Cágado, atual municipio de Mar de Espanha. Seus habitantes passaram a utilizar uma nova via, que ficaria conhecida como "Caminho do Mar de Espanha", desse modo, os viandantes que se dirigiam dessa região ao Rio de Janeiro, não mais tinham a necessidade de passar pela vila da Paraíba, pois tal caminho ligava diretamente à Sebolas.
Por volta de 1805, foi edificada a primeira grande sede de fazenda de criação e de lavouras, na margem dessa nova via, justamente para a ocupação e desenvolvimento daquele imenso território deixado pelo capitão Antonio Barroso Pereira, que falecera pouco antes. Tal empreendimento se localizava na margem do "Caminho do Mar de Espanha" em terras fluminenses, que correspondiam a zona leste da vila da Paraiba e próxima de Sebolas. Ali foi edificada uma grande sede pelo capitão José Antonio Barbosa, esposa e enteados. É possivel que o nome da propriedade tenha se perpetuado como fazenda da Bemposta, em homenagem a D. João VI, que faleceu no ano de 1826 no "Paço da Bemposta" nas cercanias de Lisboa.
O lugar era conhecido como "Portões" que atualmente, é nome de um bairro do município de Areal, que se emancipou recentemente de Três Rios.
No ano de 1813, distando mil metros a sudeste do antigo "Porto Velho", local de travessia entre Minas e Rio, no percurso do "Caminho do Mar de Espanha", a herdeira Magdalena Maria, então recem casada com Damaso José de Carvalho, ergueria a fazenda "Sant'Anna", uma homenagem dela a N. S. de Sant'Anna de Sebolas. A sede dessa fazenda foi edificada na margem de uma área lageada do rio, que por isso, se eternizou como Calçado. Magdalena Maria, ergueria posteriormente, a primeira capela do outrora arraial de Anta, também denominando-a Sant'Anna.
As fazendas Sant'Anna e Bemposta passariam a receber mudas de café "Arábica", bem antes da ocasião em que D. João VI deferiu requerimento de concessão das terras de Entre Rios, solicitadas por Antonio Barroso Pereira e sua irmã Magdalena Maria no ano de 1817.
Entusiasmado com a perspectiva econômica do café, tendo como referencia o sucesso dos franco caribenhos do alto da Tijuca, o príncipe regente determinou uma verdadeira política de estado. Havia a necessidade urgente de produzir divisas a um reino mergulhado em imensa crise economica. A melhor possibilidade após a abertura dos portos da colonia, era transforma-la em produtora de café em larga escala para exportação.
Inteirando-se dos requisitos para introduzir vastamente a cultura cafeeira, vislumbrou a coroa prioritariamente, as partes altas do "Caminho Nôvo" relativamente próximas ao porto do rio de Janeiro. Estudadas as possibilidades geográficas e logísticas, a decisão do regente recaiu nos ombros do capitão José Antonio Barbosa e seu enteado Antonio Barroso Pereira, recem egresso do batalhão de Vila Rica. Pelo entusiasmo, empenho e lealdade, logo o 2º marido de Mariana Jacinta, seria tratado pelo regente pela alcunha de capitão "Tira Morros". A razão óbvia do apelido, já denota o estado de espírito daquele que se tornaria rei do Brasil, Portugal e Algarves no ano de 1816.
A política de implantação e desenvolvimento econômico da cultura cafeeira no vale do Paraíba, foi determinada pela ação enérgica e obstinada de D. João VI. Desse modo, o epicentro da primeira onda do café ocorreu no vale do rio Calçado, na margem do caminho do Mar de Espanha Fluminense, dirigindo-se em seguida, para a banda mineira desse mesmo caminho, mais precisamente nas cercanias do antigo "Arraial do Cágado". Após o sucesso pioneiro de Bemposta, a cafeicultura logo surgiu na região de Cantagalo em terras fluminenses.
Em sentido contrário às águas do Paraíba, a implantação extraordinaria da cultura cafeeira daria fama a Vassouras no início de 1830, quando o café se tornaria o primeiro produto da pauta das exportações brasileiras.
Além do pioneirismo do capitão "Tira Morros", projetos de novas vias foram surgindo para o escoamento da cultura do café, mesmo depois da partida de D. João VI. Após árdua e longa obra serra acima, baseada nos mapas do capitão Inácio de Sousa Werneck, ocorreu a abertura da estrada do Comércio, iniciada antes de 1824. A grande empreitada ocasionaria a incorporação de outras áreas, como Rio das Flores, Valença e Rio Preto em Minas Gerais. Neste mesmo ano, haviam chegado tardiamente, os desafortunados colonos Suiços para a ocupação dos antigos sertões do Macacú.
O "Vale do Calçado", título dessa crônica e Blog, tem aqui registrada sua relevancia histórica como protagonista da primeira onda do café no vale do Paraíba, tendo sido a fazenda do Calçado, verdadeiro marco histórico, pois que, foi a primeira fazenda genuinamente projetada para a cultura cafeeira no ano de 1820. Seu famoso quadrilátero de senzalas cercavam e protegiam o terreiro de secagem do café, com o objetivo também de defender o local, contra ataques dos indios Purys que habitavam a região.
A histórica fazenda que recebeu o nome do rio, ilustra esta página. A fotografia acima foi obtida da magnífica obra de Johann Georg Grimm, que a retratou em quadro a óleo sôbre tela, então encomendado por seu proprietário, o fazendeiro Inácio Barbosa dos Santos Werneck, o barão da Bemposta. Inácio adquirira a fazenda do Calçado de Carolina Carvalho Pinto, cunhada de sua irmã Isabel Leopoldina Werneck de Carvalho, que foi casada com outros dois irmãos de Carolina. Das fazendas aqui citadas e edificadas por seus pioneiros, derivaram todas as demais da bacia do rio Calçado, estas, edificadas paulatinamente através de desmembramento de terras das originais Bemposta e Sant'Anna.